Incrível como coisas que aconteceram há duas semanas parecem agora tão distantes no tempo que sequer as percebemos como recentes, salva-nos uma certa sincronia, que às vezes, só entendemos quando ela se impõe e nos assombra.
Essa não é uma sensação nova desde que fomos imersos nos meios digitais de interação, algo no tempo e na nossa relação com ele se transformou para sempre. O passado amontoou-se no atual; o futuro transformou-se no agora e desapareceu; o presente permanece inacessível.
Em meio a isso, algo de muito novo nos atingiu, estamos invadidos por uma dimensão temporal estranha, numa quarentena planetária, vivendo um tempo desconhecido no qual tudo que foi parece distante e nada do que virá parece reconhecível. Restam as permanências e as sincronias.
Há um mês recebi o convite do poeta Frederico Barbosa para participar de uma homenagem ao centenário de João Cabral de Melo Neto. Fred é uma permanência para mim. Apesar da pouca diferença de idade, nos conhecemos estando ele como meu professor de Literatura no Colégio Equipe, era a estreia dele como docente e a minha como seu admirador.
O evento, homenagem a João Cabral, outra permanência para mim e certamente para o Fred, aconteceria no dia 15/03 e os convidados foram instados a declamar um poema de João Cabral ou algum próprio que dialogasse com a obra cabralina.
Fiquei uma semana pensando em qual poema levaria. De João Cabral são tantos os imprescindíveis que apenas de procurar qual declamaria voltei a ter o mesmo prazer de quando os descobri, anos atrás.
Nesse retorno, nesse momento de reencontro com o Fred e com João Cabral, acabei revendo poemas meus que ecoavam Cabral - muitos apenas exercícios canhestros de cópia - mas um se impôs pedindo para que eu o retrabalhasse. Parecia meu, tem a sombra da árvore maior, mas pareceu-me um fruto próprio. Recuperei o poema. Trabalhei com algumas tintas atuais a tela já iniciada tempos atrás. Estava pronto!
Certo que declamaria A MULHER E A CASA de João Cabral e levaria o meu FICAR EM CASA. Como sabemos, o evento, como tantos outros, ficou esvaziado pelo perigo das aglomerações e eu, por idade e prudência, fiquei de fato em casa espantado pela sincronia do meu poema com o que se tornaram os dias de quarentena em que ainda estamos imersos.
FICAR EM CASA
Ficar em casa
não é sobre o lá fora
o que se teme ou se ignora
não é
sobre o por fazer
que se traz ou fica
não é sobre isso
ou aquilo
é sobre aqui
mas não agora
senão um sempre e
dentro.
Não é sobre o sol ou o vento
que se perde ou entra
não é sobre paredes
antes
é sobre janelas e portas
e o aberto antes e
dentro.
Não é sobre o número
de passos ou posses
que cabem no espaço
é sobre o nome
que se meia
quando se entra
e entremeia
ou se está
dentro.
Ficar em casa como quem está
e estar como quem sempre
vem e entra e senta e janta
visita que fica
e come o que se arranja
no círculo mínimo
e íntimo
de um prato pleno
do que se fez
dentro.