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Fábio Brazil
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APARELHO DE POESIA, 18 anos.

Fábio Brazil
Publicado por em recentes · 29 Julho 2019
Olá.
Há pouco tempo fizemos umas contas e descobrimos que o Aparelho de Poesia tem 18 anos!
Isso é bastante! Não é comum que um evento de poesia alcance a maioridade penal. Mas aconteceu e chegamos à 54ª edição.
Outro fenômeno interessante, ligado à longevidade do Aparelho de Poesia, é que desde 2001, muitas pessoas que conhecem a Isabel, o Caleidos ou a mim, convivem com esse nome - Aparelho de Poesia - sem saber muito bem do que se trata.

O nome está nos nossos convites, propagandas e nas nossas mídias e a maioria dos destinatários não sabe muito bem o que significa. Assim, acho que vale começar clareando um pouco esse ponto. A palavra aparelho utilizada no nome do evento, não diz respeito a qualquer objeto para uso em qualquer finalidade; antes, aparelho, nesse nome, foi utilizada na sua acepção de lugar. Aparelho é o nome que se dá a um local secreto de reunião ou esconderijo de um grupo político clandestino; e foi dessa ideia que nasceu o nome do evento: Aparelho de Poesia.
Com isso já sabemos que é um evento que acontece num determinado lugar.

O evento é uma reunião nada secreta de pessoas que se encontram para viver a clandestinidade da poesia. O evento acontece no bar do Caleidos e vivemos a poesia por meio da leitura e criação no ato da leitura. Esse é o foco: encontro-leitura-poesia e as delícias de um bar. Sobre a clandestinidade da poesia em nosso país e a aproximação dos fruidores de poesia com uma "organização secreta" é preciso considerar o momento em que o Aparelho de Poesia foi criado para que se entenda melhor a piada.

O Aparelho de Poesia nasceu em 2001, no embalo da minha saída de sala-de-aula, abertura do Caleidos Arte e Ensino, primeira sede do Caleidos Cia de Dança e primeiro espaço de arte dirigido por Isabel e por mim. E tudo isso tem a ver com o Aparelho de Poesia: Isabel, Caleidos, sala-de-aula e espaço de arte. Hoje,  com 18 anos e 54 edições, o Aparelho de Poesia atinge a maioridade e suscita algumas reflexões.

Ali pelo início dos anos 1990, a poesia brasileira, pelo menos a que era visível para a maioria, aparentava uma certa paradeira;  a geração de 30 e 45 se despedindo; os meninos marginais dos mimeógrafos e xerox amadurecendo, mas sem ocupar o espaço crítico-acadêmico das universidades, dos jornais ou mesmo das livrarias; as resistências à e da Poesia Concreta dominando o pouco debate de ideias. A publicação em livro, objeto de luxo e fetiche, era algo muito difícil e de raro acesso para os poetas.  As grandes editoras, quase sempre de portas fechadas para os poetas, principalmente para os estreantes, apostavam somente nas traduções ou livros de poetas consagrados em tiragens pequenas; as edições previamente pagas nas pequenas editoras eram pouco atrativas; restavam as heroicas editoras autorais se sustentando na valentia de seus criadores num tabuleiro dominado por um mercado tímido de livrarias que se apequenavam diante de qualquer risco. Considere-se aqui as sempre relevantes honrosas excessões a esse raciocínio.

Gostar de poesia nesse contexto não era muito diferente de pertencer a uma sociedade secreta. E claro, a sociedade não secreta, a sociedade ela mesma, de modo geral, ao mesmo tempo que utilizava notas de 50 Cruzados Novos com Carlos Drummond na estampa e a Canção Amiga ao fundo, era, como ainda é, bem pouco amiga da poesia. "Os poetas malditos não são uma criação do romantismo: são o fruto de uma sociedade que expulsa aquilo que não se pode assimilar", bem nos ensinou Octavio Paz, no Verbo Desencarnado. Éramos nós os desencarnados. No Aparelho, nos reunimos e sobrevivemos.

E vamos continuar essa história pela via da sobrevivência. Durante alguns anos, na tal década de 1990, antes do Caleidos, fui professor de literatura. Essa experiência também tem a ver com o Aparelho.  Naquele tempo, não era raro eu ouvir de alunos a confissão de que não gostavam de literatura, mas gostavam de me ouvir declamar em sala de aula. É fato que eu fazia disso um momento especial, senão pela apresentação, pelo menos pela exigência de silêncio para que os autores pudessem ser ouvidos na minha voz. Entendi ali, que havia mais um problema de embalagem que de produto em relação à poesia; alguns poemas contaminavam as turmas e sei que se reuniam para leituras  das apostilas/antologias que eu preparava e lia para eles em sala. A oralidade da poesia vencia medos e preconceitos. Guardei isso comigo.

Desse tempo em sala de aula trago boas lembranças e alguns amigos que perduraram e até frequentam o Aparelho de Poesia. Entre as muitas coisas que eu gostava de refletir junto com os estudantes, e que de alguma forma iluminam esse olhar sobre a criação do Aparelho, uma sempre me divertia: o assombro que é o fato de um conjunto de informações, recursos e procedimentos estéticos se transformar numa tendência que marca uma época porque responde a necessidades e anseios diferentes de artistas muito díspares em lugares e sociedades muito distantes. Nunca chegávamos a grandes conclusões sobre isso, mas eu gostava de tentar impressioná-los com o que ainda hoje me espanta.

Hoje, quase 20 anos após a criação do Aparelho de Poesia, vejo que ele dialoga com um grupo maior de fenômenos que surgiram e se estabeleceram mais ou menos de forma simultânea em São Paulo, como uma das marcas da poesia de nosso tempo. Percebo que há algumas linhas comuns que podem ser apontadas senão na poesia, propriamente dita, pelo menos na forma de fruição dela e que eclodindo no final dos anos 1990 se consolidaram nas primeiras décadas deste século.

Um primeiro aspecto comum aos diversos caminhos abertos naquele momento é a poesia se despregando do livro. Claro que isso só poderia acontecer depois de muita revolução dentro do livro, no campo de batalha da página. E nesse campo, a Poesia Concreta e a Poesia Visual estão no contexto das maiores conquistas. Mas o salto da poesia para fora do livro e da leitura silenciosa, que também encontra impulso nas explorações de um "concretismo" visto de maneira ampla, precisava dialogar também com as artes da presença e da performance.

Antes de continuarmos, é importante ressaltar que o casamento da poesia com o livro sempre acenou mais com o possível do que com o estável. Nascida e criada na voz e no encontro, o livro que preserva, também aprisiona a poesia. Embalada pela mercadoria livro, a poesia mais dorme que circula. O livro que acomodou perfeitamente a prosa do romance, nem sempre foi o melhor abrigo para a poesia e lar para os poetas. Assim, não digo que houve qualquer divórcio, mas hoje a relação é aberta e a situação é de um poliamor.

Nessa abertura da relação, a poesia reencontrou a voz nos saraus, encontrou espaço cênico nas performances, foi à rua em lambes e grafites, estabeleceu nova relação com a música e com o teatro. Sem contar seu desembarque nos sites, blogs e redes sociais. O sarau é hoje um fenômeno dos mais importantes para a poesia, principalmente aquela que se atrela às questões sociais e identitárias e se torna voz das periferias propondo novas formas de socialização e fruição de arte; a poesia slam surge como arte viva, ao vivo e aos vivos na mesma rua onde as livrarias estão fechando. O Aparelho não está distante destas propostas e nasceu na mesma época. Certamente pelas mesmas necessidades e influências e respondendo a "um conjunto de informações, recursos e procedimentos estéticos" daquele momento e que vieram a "se transformar numa tendência que marca uma época"

No Aparelho o protagonismo é da leitura e da voz. Os poemas, dispostos num caderno xerox previamente preparado para o encontro, estão ali, só esperando para renascerem na voz de alguém. Cada um recebe seu caderno na entrada e todos podem ler como e quando quiserem, basta anunciar página e título. O bar silencia e recebe o poema daquela voz. Como o protagonismo é da leitura, muitas pessoas podem ler o mesmo poema, podem ler juntas, podem propor novas formas de ler o poema, podem juntar dois poemas e criar um terceiro ali mesmo, em tempo real. E é nesse ponto que o Aparelho dialoga com o Caleidos Cia.

Em 1998, quando conheci a Isabel e o Caleidos Cia, muitas coisas me encantaram ali. Entre tantas, duas se destacam em relação à poesia. Naquele momento, o trabalho mais marcante do Caleidos, e especial ainda hoje, era o Coreológicas. Trabalho pioneiro em propor interatividade por meio da linguagem da dança; insuperável no propósito de construir conhecimento e fruição de arte por meio da participação do público;  e ainda hoje, mesmo quando muitos grupos diluem a interação numa estrada batida e convencional, um trabalho único em propor participação crítica e criativa para o público e não o inofensivo modelo/cópia que se distancia da arte. E foi justamente a ideia de proposição-cênica -  desenvolvida por Isabel Marques que concebeu, dirigiu e dançou os espetáculos Coreológicas por alguns anos - que deu o caminho para estruturar o Aparelho de Poesia.

No caderno, os poemas são apresentados tal qual os autores os registraram, mas são vistos como uma proposição. Aquela forma e a leitura convencional são a possibilidade inicial daquele poema, são propostas a serem fruídas tal qual se estabilizaram e também de forma criativa - desde que se respeite o que o autor nos propôs inicialmente em termos de linguagem poética. Só vale o que está escrito, mas vale ler diferente.

Após algumas leituras convencionais, às vezes até antes, surgem leituras com mais de uma voz, numa ordem diferente dos versos, propondo novos cortes na sintaxe, de baixo para cima, do meio para as pontas, alternando versos, juntando com outro poema do caderno que interage na mesma emanação e tantas outras leituras que surgem a cada edição do Aparelho; além da fruição de poesia, estabelece-se ali um estado de criação poética, tal como acontece nos diversos espetáculos do Caleidos Cia em relação à dança.

Vale lembrar, que na mesma virada de século - dos saraus, festivais, lambes e grafites - houve uma caminhada dos poetas em direção às artes de performance e foi no mesmo espírito de tirar a poesia do papel que se deu minha aproximação com a dramaturgia para dança por meio da poesia que desenvolvo ainda hoje no Caleidos Cia. E isso se liga a outro aspecto da dança que produzimos no Caleidos e que está no Aparelho de Poesia: a noção de fruição como participação e experiência. No Aparelho, tímidos leem, receosos se juntam e declamam, os que "só foram para ouvir" se entregam ao prazer de criar, coros surgem, leituras são tramadas, a poesia salta do papel e dança entre nós.

Muitas vezes, um mesmo poema se repete inúmeras vezes durante a noite, mistura de mantra e reza, de reafirmação e repactuação entre todos; em parte isso acontece pela força dos poemas; no Aparelho não há fronteiras de tempo, língua ou espaço. Safo pode aparecer ao lado de Leila Míccolis, Rimbaud e Leminski dialogam, russos, gregos e paraguaios convivem bem. As poucas regras para escolha de um poema são: ser de entendimento mais direto e numa leitura, não ser muito longo, acomodar bem na declamação e ser bem traduzido se for o caso. Mas há um ponto específico que faz com que um poema dialogue muito fortemente com as pessoas e precise ser repetido muitas vezes: é porque ele está dando voz e forma ao que elas já traziam,  e isso, entendemos, se deve à nossa busca de sempre propor arte que dialogue de maneira direta com as pessoas e suas questões, tanto na cia de dança como no Aparelho de Poesia.

Os Aparelhos de Poesia são temáticos. Cada encontro traz uma seleção de poemas diferentes sobre um tema que os reúne naquele caderno, naquela noite. Muitas vezes o tema já está pulsando dentro das pessoas e um poema cataliza o encontro.  Após 54 edições, já declamamos poemas reunidos em cadernos chamados: "estas cidades" (poemas sobre cidades), "americanos" (poetas dos EUA), "noite de sol" (só poemas que trouxessem a imagem do sol), "dia de chuva", "sexy, erótico e pornô", "rua afora" (poemas sobre a rua), "ágora de agora" (poetas contemporâneos), "mulheres", "Carlos, Charles e Karls", "Paulos, Pauls e Pablos", "maio de Mários", "Augustos em agosto" e tantos outros temas dos quais precisávamos muito falar: "pra frente brasil", "para o seu governo" e "mor amor", "ares familiares".  

Essa reunião por temas, muitas vezes recoloca a poesia no lugar da voz coletiva que no fundo lhe dá sentido. E dessa forma o Aparelho de Poesia chegou a 54 encontros e 18 anos. Momentos mais quentes, outros menos procurados, mais alegres e criativos, menos lotados, mas sendo sempre nossa forma de dialogar com nosso tempo e com a forma de fruir poesia hoje; poesia viva no mundo do Verbo Desencarnado.

Talvez o Aparelho tenha que mudar, tudo muda, a poesia mais e antes de tudo - poetas são inquietos. A voz do outro ecoa no Aparelho, poetas são descobertos, poemas redescobertos. Na escuta a poesia se encarna e nós reencarnamos a cada Aparelho. Bem vindos!



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