Ponto de Partilha - Fábio Brazil

Fábio Brazil
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SILÊNCIO E OUTROS ASSUNTOS

Fábio Brazil
25 Outubro 2019
Olá; silêncio para mim sempre foi assunto. Sempre achei intrigante termos uma palavra para a ausência delas.
Sim temos palavras para tudo, mas essa em especial é linda. Silêncio.
É linda e é musical e é forma e conteúdo e é uma palavra que sozinha já é um poema.

Fisicamente, silêncio, como ausência de qualquer ruído nem existe pelas bandas de “prá cá do vácuo” (outra palavra sensacional); já na comunicação, o silêncio é ainda mais lindo: é uma comunicação sem mensagem; ou cuja mensagem é o próprio canal, ou possibilidade de mensagem, e a mensagem fica sendo essa via aberta. Um vácuo sobre Atlas.

Mas o silêncio de que devo tratar aqui é e não é outro. É outro, pois devo tratar do espetáculo de dança que estamos remontando, mas o caso é que o espetáculo é baseado num poema que  trata justamente desse silêncio do qual falava acima.

silêncio, o espetáculo, foi a primeira experiência que realizamos, Isabel e eu, a respeito de montar um trabalho de dança e poesia. Era 2002. O poema já existia desde 1998 e data mais ou menos dessa época nossas primeiras inquietações a respeito de propor a poesia como arte de performance e ao mesmo tempo propor que a dança se apropriasse da poesia como dramaturgia e estrutura de composição.

 
Na primeira montagem – com Soraya Sabino e Marcos Moraes em cena, música de Daniel Brazil e o restante da ficha técnica dividida entre Isabel e eu – o resultado ficou tão bom que foi com esse trabalho que participamos da primeira Mostra de Dança Contemporânea de São Paulo. Depois disso o trabalho ficou lá, como marco histórico para nós e lembrança para alguns amigos.

Ao escrever o Projeto PONTO DE PARTILHA para o prêmio ProAc de poesia, achei que deveria oferecer um trabalho de dança e poesia, afinal minha história passa por esse entroncamento. Por algum motivo, mais especificamente, achei que deveria remontar o silêncio. Quando digo “por algum motivo” é porque naquele momento eu não sabia.

Não sabia que mergulhar nos poemas, em todos os poemas, iria mexer tanto comigo. Visitar cada poema, para fazer as escolhas do que publicar, foi como voltar de alguma forma aos motivos e sensações que fizeram cada poema nascer. Por mais que a carpintaria posterior reformule os cenários e a maquiagem melhore ou disfarce as figuras, o que está no fundo do poema é o que viveu aquele que o escreveu. E é aí que o silêncio pega.

O poema silêncio, longo poema, trata de uma cena muito simples e banal, que talvez nem exista mais. O casal, na mesa, num fim de relacionamento, tomando sopa e para não se olharem e preencherem aquele tempo, leem as embalagens sobre a mesa, como se houvesse algum interesse em fenilcetonúricos, glutamatos monossódicos ou 40 palitos em média.  A imagem de fundo é essa. O que o poema propõe e o espetáculo transforma em dança e cena é a explosão de tudo que está contido nesse recorte triste e banal.

Claro que quem está ali atrás sou eu e a história de um fim de relacionamento e claro que é bastante perturbador voltar a isso. Mas uma das coisas que a arte tem de mais valiosa é justamente a possibilidade de poder voltar e reviver aquilo como outro e para o outro. Nesse caso, voltar duas vezes, à montagem anterior e aos motivos do poema existir. Deus abençoe a carpintaria e a maquiagem.

As primeiras tentativas de escrever o poema datam de 25 anos atrás: o recurso que os casais brigados tinham eram as embalagens sobre a mesa, as perspectivas de “casal” em cena eram heteronormativas e a minha percepção era de um lirismo mais focado no eu, sem perceber com a clareza de hoje o entrecruzamento dos contextos nas intimidades. Essas características, que de alguma maneira migraram para a primeira montagem, hoje teriam grande dificuldade de convencer o público mais exigente, e principalmente a nós envolvidos na remontagem.

Mas como atualizar tudo isso? Como fazer um trabalho que dialogue com o modo de criar que o Caleidos Cia tem hoje a partir de um poema “envelhecido”? – se o drama lírico amoroso não envelheceu, casais ainda se separam após um duro momento de silêncio, perda de interesse e ruptura da intimidade, o modo de exteriorizar isso é outro. Casais são outros, finais são outros, celulares e redes sociais invadiram nossos silêncios e nossas intimidades. Ler embalagens hoje é cool e engajado.

Recuperar o trabalho nos tem feito pensar e estudar um pouco mais sobre o que entendemos por intimidade hoje – além dos nudes e do Tinder. O que é esse silêncio barulhento das redes sociais que nos protege do silêncio nos relacionamentos próximos? Quais os outros assuntos que atravessam o assunto que se revela e se esconde no silêncio que antecede o fim?

Trazer isso para uma emergência de dança tem sido nosso desafio. Desafio maior que o de 2002, quando criamos pela primeira vez um espetáculo de dança baseado nesse poema. Estamos há um mês e alguns dias da estreia; antes da estreia teremos o lançamento do livro PONTO DE PARTILHA e isso rouba um pouco nossa atenção. As dúvidas muitas vezes só aumentam; a solução do ensaio de hoje, já não funciona no de amanhã.  O vácuo sobre Atlas, pesa. Vamos em frente. É certo que estrearemos bem.

O silêncio de 2002 abriu um grande ciclo e criação para o Caleidos Cia.  que esse, que estamos montando agora, nos parece vir para encerrar. Fim de ano, fim de ciclo, poesia publicada. Remontar o silêncio, que trata de um fim, nos assusta e nos faz pensar num grande renascer, com tudo de belo e de abalo que isso implica.
Se esse é o final de um ciclo, que seja como o fim de um grande amor, o primeiro de definitivo passo para o novo grande amor. Bem-vind@s.


 
 
 
 
 



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